FAXINA

      Me ausentei demais.
     Como qualquer um que passa um grande tempo fora de casa tive que voltar organizando as coisas.     Sacudi a poeira das cortinas e as abri para que o sol pudesse entrar e com ele viesse a brisa morna de fim de tarde tomando o lugar do cheiro de mofo. 
    Passei um bom tempo sentada nesse cômodo pensando no que me serve ainda e nas coisas novas que tenho que adquirir. Não joguei fora o que no momento me parece velho ou sem utilidade, pelo contrário. Resolvi guardar.
    Coloquei em um armário do canto os amores poídos, os valores quebrados, as paixões descoradas, os sentimentos enferrujados e as ideologias vazias.
   No fundo das gavetas desse mesmo armário guardei as cartas que nunca escrevi e as páginas arrancadas de um diário que nunca pude viver. Em um fundo falso coloquei o roteiro das viagens que nunca fiz, os cardápios que citam as comidas que nunca tive o prazer de saborear, os abraços que nunca dei e os beijos que nunca recebi.
    Nos cabides coloquei as personalidades que vesti e não me couberam bem, as capas em que me escondi e os casacos que nunca puderam cobrir a frieza que me consumia. Preguei por dentro das portas todas as máscaras que usei, para que quando eu abra esse armário me lembre de tantas "eus" que tentei fingir ser. 
   Os sapatos de salto desconfortáveis e os tênis apertados que sempre camuflaram as pegadas que tentei imprimir por certos lugares que andei, eu deixei no assoalho cobertos pelos lençóis que nunca usei por ter medo que se manchassem apenas pelo fato de serem demasiadamente bonitos e igualmente caros.
   Atrás do armário coloquei as minhas falsificações de Monet, tão verdadeiras quanto a felicidade que sempre tentei imprimir no meu sorriso forçado.
   Está tudo aqui para quando eu precisar novamente. 
   Agora quero estar assim:
   Eu mesma e um cômodo vazio, pronto para ser redecorado.

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